segunda-feira, 13 de abril de 2020

Ô Nuit, Ô Mes Yeux: Era uma vez o leste perdido

Com "Ó Noite, Ó Meus Olhos" (Ô Nuit, Ô Mes Yeux), este sublime romance ilustrado em francês, Lamia Ziadé nos fala de uma época que muitos podem não conhecer.
Ô nuit, ô mes yeux : Le Caire / Beyrouth / Damas / Jérusalem"  par Lamia Ziadé (Editions P.O.L, 576 pages, octobre 2015) 39,90 €


O mundo árabe naquela época girava em torno de estrelas femininas livres e reverenciadas de Marrakech a Bagdá. O Cairo, epicentro desta época de ouro, acolheu intelectuais, princesas, banqueiros, espiões, artistas, poetas, dançarinos de todas as origens que emocionaram a capital cosmopolita, a cidade de todas as possibilidades.

Originalmente, Lamia Ziadé queria dedicar um livro a Asmahan, um ícone absoluto, escandaloso e muito talentoso, que morreu aos 27 anos em um acidente de assassinato. Então, pesquisando o destino trágico de Amal Al-Atrache, ela se deparou com o destino de dezenas de outras mulheres, cada uma mais extraordinária.

Incapaz de parar ao longo do caminho, o livro traça o Oriente Médio entre as décadas de 1920 e 1970. "Se você contar a Asmahan, terá que contar tudo: todas as garotas da época, cantoras, dançarinas, atrizes, donas de cabarés, políticos, cantoras. E pouco a pouco, acabamos contando a história do pan-arabismo."

Lamia Ziadé nos dá uma jóia, um afresco fervilhante, onde seus deliciosos desenhos ilustram textos, sequências de vida dessas lendas, que fizeram milhões de corações árabes baterem. Ao folhear as páginas, suspeitamos que o trabalho de documentação era considerável e, portanto, ficamos surpresos ao descobrir histórias sobre aquelas que pensávamos que sabíamos tudo.

No fundo, a grande história se desenrola: a luta contra o protetorado francês no Levante após o colapso do Império Otomano, o Egito do rei Farouk, a revolução de 1952, as guerras árabe-israelenses e a nacionalização dos Canal de Suez. O orgulho dos árabes foi então encarnado no carisma de Nasser e seu colega feminino, Oum Kalthoum, que foi apelidado de Estrela do Oriente.
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Entre os dois, uma profunda amizade tingida com respeito mútuo emergirá; os raïs até fazem o impossível: convencer a diva a cantar Abdel Wahab, sua maior rival por tantos anos. O sonho de um povo inteiro se torna realidade, a “quarta pirâmide” e o “último faraó” se uniram em torno do que continua sendo uma das canções mais bonitas da diva: Enta Omri.

Mohamed Abdel Wahab vai revolucionar a música árabe, abrindo-a para múltiplas influências: jazz, tango, valsa, rumba. Originalmente de um ambiente modesto e conservador, como Oum Kalthoum, lutará toda a sua vida para reconhecer o estatuto de artista na sociedade. Na época, não foi fácil, mesmo depois de mergulhar no trabalho de Lamia Ziadé, ficamos surpresos ao ver a liberdade moral que reinava ali.
Oum Kalthoum conquistou sua autoridade no meio. Escolhia e dirigia sua banda, dirigia as rádios onde cantava, mudava as letras das músicas se quisesse. Tudo para sua satisfação pessoal.

"Senti a necessidade pessoal de compartilhar outro mundo árabe que não seja o que nos é mostrado o tempo todo no Ocidente, composto de terrorismo, jihadismo, mulheres com véu, considerações geopolíticas, guerras. (...) É importante lembrar que este mundo existia, que havia sido um período de abertura, tolerância e criação artística. Ela pode voltar um dia, mesmo que ele esteja muito otimista em pensar assim", disse Lamia Ziadé.


Hoje, os layali de Fayrouz ainda ressoam nos táxis de Beirute e nos de Oum Kalthoum, nos becos do Cairo. O Tarab, esse êxtase musical que abraça seu coração, o eleva e o faz girar, está sempre presente quando você ouve suas vozes. A paixão e o glamour desertaram, fazendo-nos até duvidar que esse tempo realmente existisse. Felizmente, porém, a nostalgia encantadora que emerge de "Ô Nuit, Ô Mes Yeux" está lá para nos lembrar.

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segunda-feira, 6 de abril de 2020

Ma liberté de danser - Dina Talaat


DINA! A última bailarina. Dina. Seu primeiro nome é suficiente para introduzi-la. Há mais de 20 anos ela aparece nas primeiras páginas dos jornais, nas telas dos cinemas e da televisão. Multidões se banqueteiam com as fofocas que a rodeiam sistematicamente a cada coisa que ela faz, a cada feito ou gesto, como uma auréola misteriosa e venerada. Dina não tem uma vida, tem diversas vidas, que se entrelaçam, uma mais inimaginável que a outra, permeadas de dramas, escândalos, alegrias e glamour. Seu carisma, sua obstinação em dançar, apesar das maledicências ditas pelos fundamentalistas, e sua louca liberdade fazem com que ela seja comentada além da fronteira do Oriente Médio. Porque hoje, na terra do Egito, terra originária da dança do ventre, Dina é a última das grandes a perpetuar a tradição.

Houve um tempo em que nenhum chefe de estado poderia visitar o Cairo sem que se organizasse para ele um espetáculo de dança oriental. Nessa época, as raqa’sas, as bailarinas, eram numerosas e disputavam a atenção, uma mais ardente do que a outra. Elas faziam parte do cotidiano dos egípcios. Pois foi suficiente apenas alguns anos, um estalo de dedos, para que o Egito mudasse. Em 1960, as mulheres andavam com os braços e cabeças descobertos. 50 anos mais tarde, o véu virou norma. Profundas mudanças geopolíticas, perceptíveis por todo Oriente Médio, transformaram a sociedade egípcia. Começando pelo choque do petróleo que, no fim dos anos 70, atraíram, como um ímã, milhares de trabalhadores egípcios para a Arábia Saudita e os países do Golfo. Esses expatriados, ao retornar ao país, anos mais tarde, trouxeram com eles costumes religiosos mais rígidos, que não eram mais seguidos no Egito. E no meio desse povo, amante das artes e da música, começou a surgir uma nova faceta, bem mais pudica. A Infitah, a abertura econômica iniciada pelo presidente Anouar El-Sadate, também contribuiu para balançar o equilíbrio do país. Pouco a pouco, se desculpando seja por conta do moralismo, seja por conta da falta de dinheiro, os egípcios começaram a abandonar os rituais das bailarinas. Muitos casais, hoje em dia, se casam sem chamá-las, rompendo com a tradição e com as promessas de boa sorte, de baraka, trazidas pela sua presença na festa.

Dina, entretanto, decidiu ser a guardiã das tradições. Carregar o estandarte até onde o seu corpo aguentar, sem jamais fugir ante os golpes do destino, da maldade dos homens, ou da dureza da vida. Em nome de um princípio universal que ela tornou seu, obstinadamente. Uma palavra que ela repete sem parar: liberdade. El Horreya, como se diz em árabe. A mais bela palavra, diz ela, que uma língua pode ter.

Segundo Dina, dizem que a origem da dança do ventre remonta ao tempo dos faraós, mas também há quem diga que essa dança veio junto com um povo originário das montanhas do norte da Índia, que se estabeleceu no Egito há mil anos. Os ciganos (gawasi).
"Nós a praticamos de pés descalços, para captar as energias da terra, e dizem que ela imita as dores do parto para garantir fertilidade."
  •  Rotina de uma bailarina no Egito
Dina descreve no livro uma noite tranquila, onde ela tem dois casamentos e um show num hotel marcados. As bailarinas egípcias, ou mesmo as estrangeiras que trabalham no Egito faziam até cinco ou seis shows por noite, numa rotina estafante que ia das 10 horas da noite até às 5 da manhã, sem contar o período de treino diário. Cada show durava mais de uma hora, alguns podiam durar até 3 horas como os da Fifi Abdou e da Nagwa Fouad
"Na entrada luxuosa do hotel eu apresso o passo. Não tenho tempo para olhar os buquês de flores magníficas. Eu conheço de cor o caminho. O elevador que leva aos salões de recepção, aos corredores estreitos que atravessam as salas de serviço. Eu cruzo com garçons, atarefados, com suas bandejas equilibradas, com recepcionistas, com os chefes de equipe. Nós somos parecidos, trabalhamos juntos para oferecer aos outros um sonho, um sonho luxuoso, uma fantasia de mil e uma noites.

A festa já está no seu auge. Sobre as mesas ricamente decoradas com lírios brancos,os pratos transbordam de comida. Os homens, bem vestidos, fumam seus cigarros. As mulheres rivalizam em elegância - vestidos de noite brilhantes, diamantes. A maioria usa um véu combinando. Dependurada no alto de uma grua, uma câmera se fixa na pista de dança, onde um grupo de jovens se requebra ao som da última música da Shakira.
- Madame Dina, ya set el kol (ó dama das damas), sua presença nos ilumina! diz timidamente um empregado. Ao seu lado, uma das suas colegas, ruborizada, saca o seu telefone celular do bolso para me fotografar. Pausa, sorriso, pose, clic-clac. Eu parto.
Dez vezes, até a pequena sala que me serve de camarim, eu vou parar. O tempo é curto. Entretanto, essa noite a minha agenda está razoável: dois casamentos, em hotéis diferentes, depois meu espetáculo semanal na casa noturna do Semiramis. Escuto ao longe o barulho da festa, a música, que me chama como um amante. Eu parto, corro pelo corredor. E entro sob os aplausos e os fiufius de admiração. Eu não vejo ninguém. Estou dentro da música. Não penso em mais nada. Estou num estado alterado de consciência.
A primeira parte acaba, e enquanto os músicos começam uma nova melodia, eu vou procurar a noiva, a felicito, a pego pela mão e a levo comigo até a pista. Ela não oferece nenhuma resistência, e sorri para mim, radiante em seu vestido branco, ela ondula ao meu lado e o seu marido aplaude. Tudo em torno da pista se ilumina, a família e os amigos se aproximam, formando um círculo. Escuto os zaghrouta, as risadas. Eu os sinto receptivos, felizes.
Tudo vai bem.
Uma menininha se aproxima. Ela está com um vestidinho branco, rendado, com presilhas de marfim nos cabelos cacheados. Ela é minúscula, 4 ou 5 anos. A orquestra continua, a música é ensurdecedora, e ela me olha, fascinada. Concentrada em meus movimentos, eu mal a vejo, somente por alguns instantes, mas os seus olhos me tocam. Ela se balança. E começa a dançar, meio sem jeito, mas já no ritmo.
Nós somos feitos para dançar.
Onde está o mal?"

  • Como a sociedade vê a bailarina – ibn el raqa’sa! 
Mas a bailarina é muito mal vista na sociedade egípcia, a expressão em árabe “ibn el raqa’sa” (filho de bailarina) é carregada de desprezo, o nosso equivalente a "filho da puta". Dizem que as bailarinas são devoradoras de homens, destruidoras de lares e prostitutas. Elas são o mal, o pecado incarnado. Só porque elas dançam.
"Tudo isso porque nós dançamos, porque usamos o nosso corpo. Porque amamos a música, porque a dança é mais forte que tudo, e também porque nós mostramos como é a mulher em toda a sua liberdade, verdade e sedução."
  • Os extremistas - Ramadã  
Antigamente as mulheres andavam sem véu na rua e eram respeitadas. Dina se ressente. Segundo ela, os extremistas não se ocupam mais de religião, mas de ostentação, querendo quebrar os espíritos e acorrentar as almas. Para eles a dança é haram, proibido, pecado.

No Ramadã é comum que pessoas ricas e grandes empresas financiem grandes banquetes para os necessitados, mas Dina não pode fazer isso. Ela prefere ajudar pessoalmente aqueles que precisam à sua volta, porque dizem que não se deve comer da mesa de uma bailarina, porque o seu dinheiro é sujo, é pecado.
"Por longas horas eu li o Corão. O que eu acho que é haram, pecado, é roubar, usurpar os bens dos outros. Não ganhar o seu dinheiro com o seu esforço, com o suor do seu rosto. Mas eu acredito ainda mais que  é haram, é julgar os outros. Quem somos nós para julgar os outros? Somente Allah pode julgar.
Dançar é um dom de Deus."
"A liberdade custa caro. Minha vida é uma guerra, todo dia recomeçada."
  • Dina Talaat


Dina Talaat nasceu em 12 de abril de 1964 (ela é ariana), em Roma, na Itália, seus pais eram egípcios. Seu pai trabalhava como correspondente do Middle East News Agency. Sua mãe trabalhava numa agência de imprensa italiana (mas segundo a Wikipedia ela trabalhou como secretária do embaixador indiano em Roma). Ela tem uma irmã dois anos mais velha chamada Rita, que segundo a Wikipedia, foi cantora.

Dina viveu em Roma até os 5 anos (1969), quando seus pais voltaram para o Cairo, e seu pai se instalou em Agouza (bairro do Cairo), próximo do Nilo. Dina lembra muito pouco dessa época, sabe apenas que era muito feliz.

  • As origens da sua família
Seu avô por parte de pai é um homem sério, exceto aos domingos, quando apostava em corridas de cavalo. Ele é de Dishna, um povoado grande perto de Qena, na região chamada Saïd, no Alto Egito (fica no sul do país). Essa é uma região rural, cheia de tradições fortes e muito conservadora. Até hoje o thar, código de honra, é seguido e se lê nos jornais locais histórias de vendetas.
Sua mãe, Zeinab, também vem do Saïd, mas de Minya, uma cidade maior, que é chamada de Noiva do Alto Egito. Seus habitantes são famosos por sua beleza e boa educação, e são considerados realeza, porque dizem que foi lá que nasceu Quéops, o faraó que construiu a maior das 3 pirâmides.




  •  A volta ao Cairo
A família volta ao Cairo quando Dina tem 5 anos, e vão morar no bairro de Agouza, perto do Nilo. Nessa época, 1969, as mulheres andavam de cabeça descoberta nas ruas, usando vestidos que deixavam pernas e braços à mostra, e usavam lindos penteados. Somente as mais velhas usavam véu. E as camponesas usavam seus trajes tradicionais. A sociedade era misturada, tolerante e mesmo assim, religiosa.

  • A morte de sua mãe e o segundo casamento do seu pai

Pouco tempo depois de voltar ao Egito, Dina fica sabendo que sua mãe morreu. Logo depois seu pai se casa novamente e tem mais 2 filhas. Dina sente muito a falta da sua mãe e sofre.

Sua irmã, Rita, é tudo pra ela, se fazendo de irmã, mãe, melhor amiga e confidente.

"Felizmente a Rita está comigo. Ela se faz de irmã, mãe, melhor amiga e confidente. Ela é mais sábia do que eu, menos rebelde, sabe acalmar minha raiva e suavizar minha vida."
  • Sua escola – sua primeira aula de dança
Em 1973, aos 9 anos, Dina muda de escola com a irmã mais velha. Elas deixam de frequentar um colégio franciscano onde aprendiam italiano e francês, e passam a estudar numa escola de moças anglo-árabe. Nessa nova escola, além do ensino clássico, elas podem fazer outras atividades, como teatro, canto, costura, cozinha e dança.
 "Era um curso de danças folclóricas das províncias egípcias. Meu pai me inscreveu sem nem imaginar que isso vai virar a minha vida de cabeça para baixo. Ou, mais exatamente, que eu vou finalmente achar sentido na minha vida. Porque, desde o primeiro minuto de aula, eu percebo que nada mais seria como antes. Eu escuto a música e a sinto vibrar até a ponta dos meus dedos, eu a vivo!
Toda manhã eu saio de casa feliz. Apenas alguns metros nos separam da escola, mas eu faço esse caminho todos os dias dançando.
Tenho dificuldade em me concentrar nas outras aulas, eu só penso numa coisa: a próxima aula de dança."
Nesse curso de escola Dina aprende diversas danças folclóricas e o seu primeiro espetáculo é de uma dança fallahi, onde as mulheres vão pegar água. A coreografia prevê que uma das alunas será solista, e claro, depois de muito se dedicar, Dina consegue o papel que tanto almejava.

"É o dia mais lindo da minha vida! Como estou feliz! Eu sei o que sou! Sei o que vou ser toda a minha vida! Bailarina, bailarina, eu fui feita para dançar!"


Nessa época sua família aceita a sua escolha e o seu pai a matricula na companhia de dança de Ahmad Fouad Abdallah, uma famosa escola de arte para crianças entre 10 e 16 anos, onde diversos atores conhecidos se formaram. Ela ensaia até 3 vezes por semana, no clube da juventude. Ela aprende canto, balé e dança folclórica. É nessa escola que Dina adquire o gosto pela disciplina e pelo treino árduo.
No mesmo local uma companhia profissional de folclore também faz os seus ensaios e ela é aceita entre os bailarinos profissionais em 1976, aos 12 anos.

"Nessa época ninguém ligava que nós dançássemos. Ao contrário! Os egípcios, por natureza, são alegres e amam as artes, a dança, o canto, os risos. Nós somos como os brasileiros. Como eles que nascem com o samba no pé, nós temos essa alegria e esse ritmo entranhados no mais profundo do nosso ser. É nossa natureza. Nós somos feitos disso. Nessa época ninguém brigaria com uma criança por ela estar dançando."
  • Brigas com o seu pai

As brigas com o seu pai são frequentes durante a sua adolescência, Dina é considerada rebelde. E um dia, numa briga, ela consegue os contatos da sua avó materna. Desde que o seu pai tinha se casado novamente, Dina e a irmã, Rita, não viam a família da mãe. Mas nesse dia ela telefona para a avó, querendo contar tudo o que acontece com ela e chorar suas mágoas. Para sua surpresa a avó diz que a mãe ainda está viva.

Ela explica que quando a família voltou de Roma, Zeinab pediu o divórcio, o que era chocante e impensável nos anos 70 para uma mulher. Como as duas famílias eram muito patriarcais, ao pedir o divórcio ela foi obrigada a aceitar nunca mais ver as filhas, além de abrir mão de todos os seus bens (do dote que recebeu ao casar). Para acalmar as crianças, foi dito a elas que a mãe tinha falecido, e toda vez que ela tentava falar com as filhas lhe era dito que as mesmas não queriam falar com ela.
Como uma mulher sozinha não pode viver no Egito, logo depois ela se casou novamente. Seu novo marido arranjou um emprego no Qatar e ela não teve opção, teve de partir com ele.


  • O reencontro

Apesar de não lembrar mais do rosto da mãe, Dina marca de reencontrá-la e as duas choram de alegria num emocionante reencontro.
"Hoje você vive comigo. Você não me deixa mais. Você está ao meu lado quando a sorte me dá as costas, você é meu porto seguro quando me atacam, você é, como Ali, meu sol, minha vida."

Justine - Marquês de Sade

O mundo da heroína Justine não oferece ajuda sem desejar possuir sua virtude, o seu bem mais precioso, diante da miserável vida que leva. Todos querem corromper o seu caráter, apresenta-lhe vícios, um caminho mais fácil de se obter riqueza. Uma sociedade de falso moralismo, movida a sadismo, crueldade. Poucos são aqueles que se podem confiar. 
No mundo de hoje, mudou-se os métodos (ou apenas camuflou-se), mas as pessoas são as mesmas, tentando explorar e obter vantagem das pessoas mais fragilizadas psicologicamente, sexualmente ou socialmente. Em se tratando especificamente da “virtude”, há um universo de apelo sexual que a todo custo diz aos jovem que se desfaçam o mais rápido possível de suas virtudes, sem levantar ao menos um questionamento sobre as consequências e outras escolhas que você pode ter na vida. Algumas ideias de Freud eu discordo, mas concordo quando ele diz que muito dos problemas da nossa sociedade estão ligados ou relacionados com a sexualidade. Discutir sobre a virtude parece ainda ser algo bem complexo e nada de ultrapassado.

"Justine" trata das dificuldades de duas irmãs desamparadas para sobreviver na sociedade francesa, na época da revolução: Justine e Juliette. A primeira sofrerá horrores para manter a sua virgindade, objeto de desejo de todos aqueles que se aproximam dela. A segunda, não se importa com sua virtude quando a questão é a sobrevivência. É uma história que leva-nos a refletir sobre esses questionamentos e a maneira como é explorado o sadismo, em supostos membros sociais que deveriam ser exemplos para a sociedade, e chega a ser revoltante a forma como Sade (sádico de natureza) explora os tormentos que afligiram a vida de Justine. 
Marquês de Sade, o autor, escreveu a primeira versão de ‘Justine’ em entre 1787 e 1788, quando estava preso na Bastilha. Ao todo, Sade permaneceu 13 anos na prisão. Duas versões ampliadas da história foram elaboradas em 1791 e 1797.
 

Juliette e Justine são duas jovem francesas desamparadas. O pai fugira para a Inglaterra e a mãe, morreu tempos depois, devido a enorme tristeza motivada pelo abandono do seu parceiro. O destino foi o mestre que criou as meninas. Com pouco dinheiro para se sustentarem, logo o convento lhes fecha as portas. Com 100 escudos (moeda), cada uma parte para caminhos separados.

“É porque só se gosta das pessoas por causa da ajuda ou dos agrados que se imagina que possa vir a receber.” (Justine)

Juliette conheceu uma senhora prostituta que lhe ensinou como usar seu corpo para obter dinheiro fácil e ofereceu uma oportunidade de sobreviver a vida. Logo, casou-se com o Conde de Lorsange e tratou de matá-lo para logo desfrutar de seu dinheiro. Cometeu três infanticídios ao longo da vida e outros crimes.
Já Justine, preferindo viver honestamente sem vender sua virtude, resolve pedir ajuda a um padre, que tenta molestá-la.

“Quanto a desgraça que atormenta a virtude, o infeliz a quem a sorte persegue tem o consolo da sua consciência, e os prazeres secretos que colhe da sua pureza, logo o compensam da injustiça do homem.” (Narrador)
         
Logo a história nos leva para o futuro: uma jovem acusada de crimes como assassinato, roubo e incêndio vive com o senhor de Conville e sua esposa. Na presença daqueles nobres cidadãos, a jovem que oculta seu nome, resolve conta-lhe suas desgraças, narrando pois, sua vida.

“Esta virtude da qual fazeis tanto luxo de falar não serviu para nada neste mundo e fareis bem em entregá-la a alguém quando não tiverdes sequer um copo d’água para beber.” (senhor Dubourg)
Mendigando pelos cantos, Justine é acolhida por um velho avarento chamando Du Harpin e sua amante. É encarregada de realizar os trabalhos domésticos.

“Já estava escrito na página dos meus destinos que cada uma das minhas ações honestas para onde meu caráter me levasse, deveria ser paga com uma desgraça.” (Justine)

O patrão logo manda prender Justine acusando-a de roubo, sendo que os verdadeiros culpados sãos os próprios patrões da jovem.

“Aqui, acredita-se que a virtude é incompatível com a miséria, e nos tribunais, o infortúnio é uma prova completa contra o acusado.” (Justine)

Na prisão conhece uma ladra chamada Dubois que juntamente com seus comparsas, incendeia o local. Ela oferece ajuda a Justine, e quando a menina desconfia de Dubois, a mesma a obrigar a seguir em sua vida de crimes, a medida que pressiona os delinquentes de seu bando a estuprar Justine. Aproveitando-se de um briga para ver que primeiro estupra Justine, ela aproveita e foge.

Justine presencia no bosque a relação sexual de dois homens: o jovem Adonis Bressac e seu criado Jasmin. O jovem, temendo que Justine contasse o que viu, a leva para casa antes de ameaçá-la casa se atreva a dizer a verdade. Justine confia na senhora Bressac, que promete ajudá-la em seus problemas judiciais (o roubo e incêndio na prisão). Levando uma vida como criada, Justine ousa sonhar com o amor: está apaixonada por Adonis. Contudo, o jovem planeja atentar contra a vida de sua mãe e pede que Justine o ajuda. A mesma concorda em ser sua cúmplice, com medo de suas ameaças, mas conta tudo a condessa que fica horrorizada com o que o filho planejava.

“Mas estava escrito no céu que esse crime abominável seria executado e que a virtude humilhada cederia aos esforços da perversidade.” (Justine)

Mesmo alertada da trama a condessa morre envenenada pelo filho e Justine é culpada por não ter participado do crime por Adonis. Ela a leva ao bosque e lá confessa que soubera que a jovem contou a condessa o seu plano, e a castiga fisicamente, dando chicotadas violentas. Quando percebe os suspiros fracos da jovem, diz que todos do castelo sabem que foi ela quem envenenara a condessa e aconselha que Justine fuja pois o seu processo criminal não fora nulo e sim acrescentado mais um crime: assassinato.
Chegando em uma aldeia, bastante debilitada, um médico ajuda a curar suas feridas. Justine passou dois anos vivendo na casa do médico, até que um dia, escuta um choro de menina no porão, e suspeitando das maldades do doutor, liberta a garotinha. Sem tempo para fugir, é surpreendida pelo médico, que a tortura e marca suas costas a ferro. Depois, deixa Justine na floresta. Aos 22 anos de idade, Justine só viu um mundo injusto e cruel.

“Doce solidão (...) como tua morada me causa inveja.” (Justine)
         
Confiando na santidade de religiosos, ela se dirige ao Convento de Recoletos, onde é estuprada por quatro padres, perdendo pois sua virtude (sua virgindade), seu maior bem. Ali, a moça torna-se prisioneira das depravações dos religiosos.

“Eu provei num tal grau de violência que as dores da dilaceração de minha virgindade foram as menores que tive que suportar naquele perigoso ataque.” (Justine)
Mesmo em tal provação, Justine sempre vale da religião como uma esperança diante da crueldade da vida e das pessoas que sempre utilizam-se da fraquezas de certas pessoas, para sua ascensão social ou sexual. Os anos passam e com a chegada de dois novos padres, as moças ou prisioneiras sexuais são libertas, sob a ameaça de um sigilo absoluto de tudo que lá viveram.

“E tu, desgraçada criatura, sofre sozinha, sofre sem te queixar, pois está escrito que as tribulações e os sofrimentos devem ser a  partilha terrível da virtude” (Justine).

No caminho fora de Lyon, conhece Dalville que se encontrava muito machucado. Ela o ajuda e ele oferece um abrigo para a jovem. Dizendo morar com a esposa e que precisava de uma criada, seduz Justine rumo a mais uma prisão: um falsário, onde fora proposto “trabalhar em uma cisterna onde mais duas mulheres nuas e agrilhoadas, moviam a roda que despejava água num reservatório”.
Como prova de sua superioridade, Dalville chicoteia Justine, sem motivo algum.

“Portanto, o homem é naturalmente mau, ele está no delírio das suas paixões quase sempre como na sua calma, e em todos os casos, os males do seu semelhante podem ser prazeres execráveis para ele.” (Justine)

Já rico com suas trapaças, Dalville vai embora, deixando um substituto nos negócios: Roland, um homem aparentemente bom, que liberta as jovens daquele humilhante trabalho e lhe emprega na oficina de cunhagem de moedas. Contudo, a polícia logo chega ao local e prende a todos, levando-os para Grenoble.

O magistrado ouve a história de Justine e não permite que ela vá para a forca. Instala a jovem em um albergue e avisa que já está livre de todas as suas supostas culpas. Reconhece naquele lugar a ladra Dubois, que agora já é condessa. A mesma planeja roubar um comerciante que está encantado com Justine e pede a ajuda da jovem. Sabendo que Justine iria alertar o senhor Dubrevil, homem digno que promete casa-se com Justine, a ladra/condessa envenena o comerciante. O amigo do comerciante acredita nas palavras de Justine e recomenda que a mesma siga a senhora Bertrand.

Alojada em um albergue em Villefranche, ocorre um incêndio. Na tentativa de salvar a vida da filha de Bertrand, Justine escorrega e acaba deixando a criança cair nas chamas. Notando que também fora roubada, a senhora Bertrand acusa Justine. Testemunhas acabam confessando ter visto Justine em várias cenas dos crimes descritos.

Sabereis morrer inocente e pelo menos sem remorso.” (Justine)

No final da narrativa, Justine que omitira seu verdadeiro nome, usando o nome de Sofia, diz ser Justine. A senhora de Lorsarge, trata-se pois de sua irmã Juliette. As duas se abraçam e choram bastante. O senhor de Corville, amante de Juliette, promete ajudar Justine. Escreve uma carta que chega nas mãos do rei que com a ajuda de um advogado (o mesmo que encaminha Justine ao albergue assim que o magistrado lhe absorve de seus crimes, antes de conhecer a senhora Bertrand e dos infelizes acontecimentos) inocentam a jovem.

Mesmo feliz, Justine não acredita nesse momento feliz, sentindo que a qualquer momento a sombra da infelicidade baterá a sua porta. Em um dia tempestuoso, ela é atingida por um raio e morre. Com esse acontecimento, Juliette se arrepende de todos os seus crimes do passado e abandona o senhor Corville. Pede perdão a providência e ingressa no Convento das Carmelitas.

“Oh, vós que ledes esta história, passai tirar dela o mesmo proveito daquela mulher mundana e corrigida; passais convencer-vos com ela que a verdadeira felicidade está somente no seio da virtude, e que se Deus quer que ela seja perseguida na Terra, é para preparar no céu a mais faustosa recompensa.” (Narrador)