segunda-feira, 6 de abril de 2020

Ma liberté de danser - Dina Talaat


DINA! A última bailarina. Dina. Seu primeiro nome é suficiente para introduzi-la. Há mais de 20 anos ela aparece nas primeiras páginas dos jornais, nas telas dos cinemas e da televisão. Multidões se banqueteiam com as fofocas que a rodeiam sistematicamente a cada coisa que ela faz, a cada feito ou gesto, como uma auréola misteriosa e venerada. Dina não tem uma vida, tem diversas vidas, que se entrelaçam, uma mais inimaginável que a outra, permeadas de dramas, escândalos, alegrias e glamour. Seu carisma, sua obstinação em dançar, apesar das maledicências ditas pelos fundamentalistas, e sua louca liberdade fazem com que ela seja comentada além da fronteira do Oriente Médio. Porque hoje, na terra do Egito, terra originária da dança do ventre, Dina é a última das grandes a perpetuar a tradição.

Houve um tempo em que nenhum chefe de estado poderia visitar o Cairo sem que se organizasse para ele um espetáculo de dança oriental. Nessa época, as raqa’sas, as bailarinas, eram numerosas e disputavam a atenção, uma mais ardente do que a outra. Elas faziam parte do cotidiano dos egípcios. Pois foi suficiente apenas alguns anos, um estalo de dedos, para que o Egito mudasse. Em 1960, as mulheres andavam com os braços e cabeças descobertos. 50 anos mais tarde, o véu virou norma. Profundas mudanças geopolíticas, perceptíveis por todo Oriente Médio, transformaram a sociedade egípcia. Começando pelo choque do petróleo que, no fim dos anos 70, atraíram, como um ímã, milhares de trabalhadores egípcios para a Arábia Saudita e os países do Golfo. Esses expatriados, ao retornar ao país, anos mais tarde, trouxeram com eles costumes religiosos mais rígidos, que não eram mais seguidos no Egito. E no meio desse povo, amante das artes e da música, começou a surgir uma nova faceta, bem mais pudica. A Infitah, a abertura econômica iniciada pelo presidente Anouar El-Sadate, também contribuiu para balançar o equilíbrio do país. Pouco a pouco, se desculpando seja por conta do moralismo, seja por conta da falta de dinheiro, os egípcios começaram a abandonar os rituais das bailarinas. Muitos casais, hoje em dia, se casam sem chamá-las, rompendo com a tradição e com as promessas de boa sorte, de baraka, trazidas pela sua presença na festa.

Dina, entretanto, decidiu ser a guardiã das tradições. Carregar o estandarte até onde o seu corpo aguentar, sem jamais fugir ante os golpes do destino, da maldade dos homens, ou da dureza da vida. Em nome de um princípio universal que ela tornou seu, obstinadamente. Uma palavra que ela repete sem parar: liberdade. El Horreya, como se diz em árabe. A mais bela palavra, diz ela, que uma língua pode ter.

Segundo Dina, dizem que a origem da dança do ventre remonta ao tempo dos faraós, mas também há quem diga que essa dança veio junto com um povo originário das montanhas do norte da Índia, que se estabeleceu no Egito há mil anos. Os ciganos (gawasi).
"Nós a praticamos de pés descalços, para captar as energias da terra, e dizem que ela imita as dores do parto para garantir fertilidade."
  •  Rotina de uma bailarina no Egito
Dina descreve no livro uma noite tranquila, onde ela tem dois casamentos e um show num hotel marcados. As bailarinas egípcias, ou mesmo as estrangeiras que trabalham no Egito faziam até cinco ou seis shows por noite, numa rotina estafante que ia das 10 horas da noite até às 5 da manhã, sem contar o período de treino diário. Cada show durava mais de uma hora, alguns podiam durar até 3 horas como os da Fifi Abdou e da Nagwa Fouad
"Na entrada luxuosa do hotel eu apresso o passo. Não tenho tempo para olhar os buquês de flores magníficas. Eu conheço de cor o caminho. O elevador que leva aos salões de recepção, aos corredores estreitos que atravessam as salas de serviço. Eu cruzo com garçons, atarefados, com suas bandejas equilibradas, com recepcionistas, com os chefes de equipe. Nós somos parecidos, trabalhamos juntos para oferecer aos outros um sonho, um sonho luxuoso, uma fantasia de mil e uma noites.

A festa já está no seu auge. Sobre as mesas ricamente decoradas com lírios brancos,os pratos transbordam de comida. Os homens, bem vestidos, fumam seus cigarros. As mulheres rivalizam em elegância - vestidos de noite brilhantes, diamantes. A maioria usa um véu combinando. Dependurada no alto de uma grua, uma câmera se fixa na pista de dança, onde um grupo de jovens se requebra ao som da última música da Shakira.
- Madame Dina, ya set el kol (ó dama das damas), sua presença nos ilumina! diz timidamente um empregado. Ao seu lado, uma das suas colegas, ruborizada, saca o seu telefone celular do bolso para me fotografar. Pausa, sorriso, pose, clic-clac. Eu parto.
Dez vezes, até a pequena sala que me serve de camarim, eu vou parar. O tempo é curto. Entretanto, essa noite a minha agenda está razoável: dois casamentos, em hotéis diferentes, depois meu espetáculo semanal na casa noturna do Semiramis. Escuto ao longe o barulho da festa, a música, que me chama como um amante. Eu parto, corro pelo corredor. E entro sob os aplausos e os fiufius de admiração. Eu não vejo ninguém. Estou dentro da música. Não penso em mais nada. Estou num estado alterado de consciência.
A primeira parte acaba, e enquanto os músicos começam uma nova melodia, eu vou procurar a noiva, a felicito, a pego pela mão e a levo comigo até a pista. Ela não oferece nenhuma resistência, e sorri para mim, radiante em seu vestido branco, ela ondula ao meu lado e o seu marido aplaude. Tudo em torno da pista se ilumina, a família e os amigos se aproximam, formando um círculo. Escuto os zaghrouta, as risadas. Eu os sinto receptivos, felizes.
Tudo vai bem.
Uma menininha se aproxima. Ela está com um vestidinho branco, rendado, com presilhas de marfim nos cabelos cacheados. Ela é minúscula, 4 ou 5 anos. A orquestra continua, a música é ensurdecedora, e ela me olha, fascinada. Concentrada em meus movimentos, eu mal a vejo, somente por alguns instantes, mas os seus olhos me tocam. Ela se balança. E começa a dançar, meio sem jeito, mas já no ritmo.
Nós somos feitos para dançar.
Onde está o mal?"

  • Como a sociedade vê a bailarina – ibn el raqa’sa! 
Mas a bailarina é muito mal vista na sociedade egípcia, a expressão em árabe “ibn el raqa’sa” (filho de bailarina) é carregada de desprezo, o nosso equivalente a "filho da puta". Dizem que as bailarinas são devoradoras de homens, destruidoras de lares e prostitutas. Elas são o mal, o pecado incarnado. Só porque elas dançam.
"Tudo isso porque nós dançamos, porque usamos o nosso corpo. Porque amamos a música, porque a dança é mais forte que tudo, e também porque nós mostramos como é a mulher em toda a sua liberdade, verdade e sedução."
  • Os extremistas - Ramadã  
Antigamente as mulheres andavam sem véu na rua e eram respeitadas. Dina se ressente. Segundo ela, os extremistas não se ocupam mais de religião, mas de ostentação, querendo quebrar os espíritos e acorrentar as almas. Para eles a dança é haram, proibido, pecado.

No Ramadã é comum que pessoas ricas e grandes empresas financiem grandes banquetes para os necessitados, mas Dina não pode fazer isso. Ela prefere ajudar pessoalmente aqueles que precisam à sua volta, porque dizem que não se deve comer da mesa de uma bailarina, porque o seu dinheiro é sujo, é pecado.
"Por longas horas eu li o Corão. O que eu acho que é haram, pecado, é roubar, usurpar os bens dos outros. Não ganhar o seu dinheiro com o seu esforço, com o suor do seu rosto. Mas eu acredito ainda mais que  é haram, é julgar os outros. Quem somos nós para julgar os outros? Somente Allah pode julgar.
Dançar é um dom de Deus."
"A liberdade custa caro. Minha vida é uma guerra, todo dia recomeçada."
  • Dina Talaat


Dina Talaat nasceu em 12 de abril de 1964 (ela é ariana), em Roma, na Itália, seus pais eram egípcios. Seu pai trabalhava como correspondente do Middle East News Agency. Sua mãe trabalhava numa agência de imprensa italiana (mas segundo a Wikipedia ela trabalhou como secretária do embaixador indiano em Roma). Ela tem uma irmã dois anos mais velha chamada Rita, que segundo a Wikipedia, foi cantora.

Dina viveu em Roma até os 5 anos (1969), quando seus pais voltaram para o Cairo, e seu pai se instalou em Agouza (bairro do Cairo), próximo do Nilo. Dina lembra muito pouco dessa época, sabe apenas que era muito feliz.

  • As origens da sua família
Seu avô por parte de pai é um homem sério, exceto aos domingos, quando apostava em corridas de cavalo. Ele é de Dishna, um povoado grande perto de Qena, na região chamada Saïd, no Alto Egito (fica no sul do país). Essa é uma região rural, cheia de tradições fortes e muito conservadora. Até hoje o thar, código de honra, é seguido e se lê nos jornais locais histórias de vendetas.
Sua mãe, Zeinab, também vem do Saïd, mas de Minya, uma cidade maior, que é chamada de Noiva do Alto Egito. Seus habitantes são famosos por sua beleza e boa educação, e são considerados realeza, porque dizem que foi lá que nasceu Quéops, o faraó que construiu a maior das 3 pirâmides.




  •  A volta ao Cairo
A família volta ao Cairo quando Dina tem 5 anos, e vão morar no bairro de Agouza, perto do Nilo. Nessa época, 1969, as mulheres andavam de cabeça descoberta nas ruas, usando vestidos que deixavam pernas e braços à mostra, e usavam lindos penteados. Somente as mais velhas usavam véu. E as camponesas usavam seus trajes tradicionais. A sociedade era misturada, tolerante e mesmo assim, religiosa.

  • A morte de sua mãe e o segundo casamento do seu pai

Pouco tempo depois de voltar ao Egito, Dina fica sabendo que sua mãe morreu. Logo depois seu pai se casa novamente e tem mais 2 filhas. Dina sente muito a falta da sua mãe e sofre.

Sua irmã, Rita, é tudo pra ela, se fazendo de irmã, mãe, melhor amiga e confidente.

"Felizmente a Rita está comigo. Ela se faz de irmã, mãe, melhor amiga e confidente. Ela é mais sábia do que eu, menos rebelde, sabe acalmar minha raiva e suavizar minha vida."
  • Sua escola – sua primeira aula de dança
Em 1973, aos 9 anos, Dina muda de escola com a irmã mais velha. Elas deixam de frequentar um colégio franciscano onde aprendiam italiano e francês, e passam a estudar numa escola de moças anglo-árabe. Nessa nova escola, além do ensino clássico, elas podem fazer outras atividades, como teatro, canto, costura, cozinha e dança.
 "Era um curso de danças folclóricas das províncias egípcias. Meu pai me inscreveu sem nem imaginar que isso vai virar a minha vida de cabeça para baixo. Ou, mais exatamente, que eu vou finalmente achar sentido na minha vida. Porque, desde o primeiro minuto de aula, eu percebo que nada mais seria como antes. Eu escuto a música e a sinto vibrar até a ponta dos meus dedos, eu a vivo!
Toda manhã eu saio de casa feliz. Apenas alguns metros nos separam da escola, mas eu faço esse caminho todos os dias dançando.
Tenho dificuldade em me concentrar nas outras aulas, eu só penso numa coisa: a próxima aula de dança."
Nesse curso de escola Dina aprende diversas danças folclóricas e o seu primeiro espetáculo é de uma dança fallahi, onde as mulheres vão pegar água. A coreografia prevê que uma das alunas será solista, e claro, depois de muito se dedicar, Dina consegue o papel que tanto almejava.

"É o dia mais lindo da minha vida! Como estou feliz! Eu sei o que sou! Sei o que vou ser toda a minha vida! Bailarina, bailarina, eu fui feita para dançar!"


Nessa época sua família aceita a sua escolha e o seu pai a matricula na companhia de dança de Ahmad Fouad Abdallah, uma famosa escola de arte para crianças entre 10 e 16 anos, onde diversos atores conhecidos se formaram. Ela ensaia até 3 vezes por semana, no clube da juventude. Ela aprende canto, balé e dança folclórica. É nessa escola que Dina adquire o gosto pela disciplina e pelo treino árduo.
No mesmo local uma companhia profissional de folclore também faz os seus ensaios e ela é aceita entre os bailarinos profissionais em 1976, aos 12 anos.

"Nessa época ninguém ligava que nós dançássemos. Ao contrário! Os egípcios, por natureza, são alegres e amam as artes, a dança, o canto, os risos. Nós somos como os brasileiros. Como eles que nascem com o samba no pé, nós temos essa alegria e esse ritmo entranhados no mais profundo do nosso ser. É nossa natureza. Nós somos feitos disso. Nessa época ninguém brigaria com uma criança por ela estar dançando."
  • Brigas com o seu pai

As brigas com o seu pai são frequentes durante a sua adolescência, Dina é considerada rebelde. E um dia, numa briga, ela consegue os contatos da sua avó materna. Desde que o seu pai tinha se casado novamente, Dina e a irmã, Rita, não viam a família da mãe. Mas nesse dia ela telefona para a avó, querendo contar tudo o que acontece com ela e chorar suas mágoas. Para sua surpresa a avó diz que a mãe ainda está viva.

Ela explica que quando a família voltou de Roma, Zeinab pediu o divórcio, o que era chocante e impensável nos anos 70 para uma mulher. Como as duas famílias eram muito patriarcais, ao pedir o divórcio ela foi obrigada a aceitar nunca mais ver as filhas, além de abrir mão de todos os seus bens (do dote que recebeu ao casar). Para acalmar as crianças, foi dito a elas que a mãe tinha falecido, e toda vez que ela tentava falar com as filhas lhe era dito que as mesmas não queriam falar com ela.
Como uma mulher sozinha não pode viver no Egito, logo depois ela se casou novamente. Seu novo marido arranjou um emprego no Qatar e ela não teve opção, teve de partir com ele.


  • O reencontro

Apesar de não lembrar mais do rosto da mãe, Dina marca de reencontrá-la e as duas choram de alegria num emocionante reencontro.
"Hoje você vive comigo. Você não me deixa mais. Você está ao meu lado quando a sorte me dá as costas, você é meu porto seguro quando me atacam, você é, como Ali, meu sol, minha vida."

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