O livro "Orientalismo", de Edward W. Said, trata de como se construiu a ideia e os conceitos sobre o mundo árabe.
O livro, que no Brasil foi publicado pela Companhia das Letras, é dividido em três partes. Na primeira o autor trata do alcance do orientalismo, na segunda das suas estruturas e na terceira sobre o orientalismo na atualidade. Apesar de ter sido publicado na década de 1970, é uma obra fundamental para compreendermos como o Ocidente inventou o Oriente.
Foi o Orientalismo que construiu os consensos que legitimam as atrocidades americanas no Oriente Médio. Israel serve-se do mesmo para submeter de maneira brutal os palestinos dentro e fora de seu território.
No prefácio da obra escrito em 2003, Said afirma que “as sociedades contemporâneas de árabes e muçulmanos sofreram um ataque tão maciço, tão calculadamente agressivo em razão de seu atraso, de sua falta de democracia e de sua supressão dos direitos das mulheres que simplesmente esquecemos que noções como modernidade, iluminismo e democracia não são, de modo algum, conceitos simples e consensuais que se encontram ou não, como ovos de Páscoa, na sala de casa.”
A observação faz sentido, pois até bem pouco tempo muitos países considerados ocidentais ou viviam sob ditaduras (Argentina, Chile, Brasil) ou apoiavam regimes autoritários em nome da democracia (EUA).
Na introdução da obra, o autor esclarece que “o Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias européias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma das suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. Além disto, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material européia. O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e mesmo ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais.”
Ao longo da obra, Said demonstrará como este "Outro" foi material e intelectualmente importante para consolidar o Ocidente. Também demonstrará que nunca houve uma contrapartida. Enquanto os europeus (e depois os americanos) alimentavam o orientalismo, no Oriente não houve um processo intelectual similar. Não há um ocidentalismo produzido por intelectuais árabes. A prova desta assimetria é evidente, pois “…tem se estimado, que foram escritos cerca de 60 mil livros sobre o Oriente. Próximo entre 1800 e 1950; não há um número nem de longe comparável de livros orientais sobre o Ocidente. Como aparato cultural, o Orientalismo é agressão, atividade, julgamento, persistência e conhecimento.”
Para Said a “relação entre Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de dominação, de graus variáveis de uma hegemonia complexa.” O orientalismo, não foi, portanto, apenas o resultado de ocupações militares. Foi principalmente um investimento continuado que criou “um sistema de conhecimento sobre o Oriente, uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciência ocidental, assim como o mesmo investimento multiplicou – na verdade, tornou verdadeiramente produtivas – as afirmações que transitam do Orientalismo para a cultura em geral.”
Muitos escritores europeus se dedicaram ao orientalismo ou por ele foram influenciados. Nem todos tinham consciência do verdadeiro valor político e ideológico de sua produção para a hegemonia do Ocidente no Oriente. De qualquer maneira ocorreu “um intercâmbio dinâmico entre autores individuais e os grandes interesses políticos modelados pelos três grandes impérios – o britânico, o francês e o americano – em cujo território intelectual e imaginativo a escrita foi produzida.”
O orientalismo se encarregou de representar o Oriente, de definir seus contornos, características e vocações. Tudo isto foi feito á margem dos interesses do habitantes do Oriente. Não foram os orientais mas os ocidentais que criaram e alimentaram – e ainda alimentam – o orientalismo. Mas não é o que está oculto nos textos orientalistas que chamaram a atenção de Said. Sua análise tem como objeto o que está na superfície dos textos. É na sua exterioridade em relação ao que descreve que Said descobre todo um universo de percepções distorcidas.
O produto desta exterioridade é a representação “desde um marco tão remoto como a peça de Ésquilo, Os Persas, o Oriente é transformado, passando de uma alteridade muito distante e freqüentemente ameaçadora para figuras que são relativamente familiares (no caso de Ésquilo, mulheres asiáticas aflitas).” Segundo Said a peça “obscurece o fato de que o público está assistindo uma encenação altamente artificial de algo que um não oriental transformou num símbolo de todo o Oriente.” O mesmo seria feito de maneiras parecidas pelos autores medievais, iluministas e modernos.
Já na década de 1970, Said percebeu que um “aspecto do mundo eletrônico pós-moderno é que houve um reforço dos estereótipos pelos quais o Oriente é visto. A televisão, os filmes e todos os recursos da mídia têm forçado as informações a se ajustar em moldes cada vez mais padronizados. No que diz respeito ao Oriente, a padronização e os estereótipos culturais intensificam o domínio da demonologia imaginativa e acadêmica do ‘misterioso Oriente’ do século XIX.”
Ao tratar do alcance do orientalismo, Said faz referência a dois políticos ingleses: Balfour e Cromer.
No princípio do século XX, o britânico Arthur James Balfour proferiu um discurso na Câmara dos Comuns sobre os problemas no Egito. Após analisar o mesmo detalhadamente, Said percebeu que o discurso pode ser decomposto da seguinte maneira: “A Inglaterra conhece o Egito; o Egito é o que a Inglaterra conhece; a Inglaterra sabe que o Egito não pode ter autogoverno; a Inglaterra confirma esse conhecimento ocupando o Egito; para os egípcios, o Egito é o que a Inglaterra ocupou e agora governa; a ocupação estrangeira torna-se, portanto, ‘a própria base’ da civilização egípcia contemporânea; o Egito requer, até insistentemente, a ocupação britânica.”
No discurso de Balfour o Egito não um país. É uma categoria britânica. Os egípcios não são seres humanos, mas coisas que preenchem um espaço geográfico ocupado pelo exército colonial da Inglaterra.
Ao contrário de Balfour, Cromer foi governador colonial dos egípcios. Mesmo assim nunca fez quaisquer “esforços para esconder que, a seus olhos, os orientais eram apenas o material humano que ele governava nas colônias britânicas”. Para Cromer o oriental “age, fala e pensa de um modo exatamente oposto ao do europeu.”
O autor de ORIENTALISMO detectou na linguagem de Balfour e Cromer que “o oriental é descrito como algo que se julga (como um tribunal), algo que se estuda e descreve (como num currículo), algo que se disciplina (como numa escola ou prisão), algo que se ilustra (como num manual de zoologia). O ponto é que em cada um desses casos o oriental é contido e representado por estruturas dominadoras.”
A análise de discursos políticos pode dar a impressão que o orientalismo foi produto do colonialismo do século XIX. Não foi. Muito antes do colonialismo europeu, os ocidentais já haviam criado e se apropriado ideologicamente do Oriente. Mas Said reconhece que durante a expansão européia (1815/1914) houve um progresso imenso das instituições e do conteúdo orientalista.
“O Orientalismo foi submetido ao imperialismo, ao positivismo, ao utopismo, ao estoicismo, ao darwinismo, ao racismo, ao freudianismo, ao marxismo, ao spenglerismo. Mas o Orientalismo, como muitas da ciências naturais e sociais, tem paradigmas de pesquisa, suas próprias sociedades eruditas, seu próprio establishiment.”
Como representação do Outro, o orientalismo tratou de criar uma imagem do islã. Esta imagem foi construída principalmente em razão do medo, porque depois da “morte de Maomé em 632, a hegemonia militar e mais tarde cultural e religiosa do islã cresceu enormemente. Primeiro, a Pérsia, a Síria e o Egito, depois a Turquia e mais tarde a África do Norte caíram nas mãos dos exércitos muçulmanos; nos séculos VIII e IX, a Espanha, a Sicília e partes da França foram conquistadas.”
Mesmo após a reconquista de vastas áreas ao islã, os europeus preservaram a imagem negativa do islã e dos orientais. Em razão disto, não só “o Orientalismo é acomodado às exigências do cristianismo ocidental; é também circunscrito por uma série de atitudes e julgamentos que não enviam a mente ocidental em primeiro lugar às fontes orientais para correção e verificação, mas antes a outras obras orientalistas. O palco do orientalista, como venho chamando, torna-se um sistema moral e epistemológico.”
Após fazer uma longa referência a campanha napoleônica no Egito, Said esclarece que enquanto “os historiadores da Renascença julgavam o Oriente inflexivelmente como um inimigo, os do século XVIII confrontavam as peculiaridades do Oriente com algum distanciamento e com uma tentativa de lidar diretamente com a fonte oriental da matéria, talvez porque essa técnica ajudasse o europeu a conhecer melhor.” A conhecer e a dominar, pois foi o erudito Silvestre Sacy “quem traduziu a proclamação aos argelinos” quando os franceses ocuparam Argel em 1830.
Sacy foi o primeiro grande orientalista. “Seu heroísmo como erudito foi ter enfrentado com sucesso dificuldades insuperáveis; adquiriu os meios de apresentar um campo de estudo a seus estudantes, quando não havia campo nenhum. Ele fez os livros, os preceitos, os exemplos, dizia sobre Sacy o duque Broglie.”
Renan continuou a obra de Sacy. Mas ao contrário dele, Renan “não falava realmente como um homem a todos os homens, mas antes como uma voz especializada e reflexiva que aceitava, como ele disse no prefácio de 1890, a desigualdade das raças e a dominação necessária por uma minoria como uma lei antidemocrática da natureza e da sociedade.” Em Renan, a superioridade européia e a inferioridade oriental são axiomas indiscutíveis.
Do alto de seu pedestal, Renan não tinha escrúpulos em julgar os semitas (árabes e judeus) degenerados. “Leia-se quase toda página de Renan sobre o árabe, o hebraico, o aramaico ou o proto-semítico, e o que se lê é um fato de poder, pelo qual a autoridade do filólogo orientalista colhe à vontade na biblioteca exemplos do discurso humano e ali os enfileira rodeados por uma suave prosa européia que aponta os defeitos, as virtudes, os barbarismos e as deficiências na linguagem, no povo e na civilização.”
Não há dúvidas de que o orientalismo de Renan ajudou a criar e reforçar o mito da superioridade européia. O próprio Said afirma que “não é exagerado dizer que o laboratório filológico de Renan é o local real de seu etnocentrismo europeu; mas o que precisa ser enfatizado é que o laboratório filológico não existe fora do discurso, a escrita pela qual é constantemente produzido e experimentado.”
Nem Karl Marx teria conseguido escapar dos preconceitos orientalistas. Ao analisar a ocupação inglesa da Índia, o alemão afirmou que “não devemos esquecer que essas comunidades de vida idílica, por mais inofensivas que possam parecer, sempre foram o fundamento sólido do despotismo oriental.” A referência ao “despotismo oriental” é sugestiva. Para Said as “análises econômicas de Marx são perfeitamente adequadas a um empreendimento orientalista padrão, ainda que a humanidade de Marx, a sua simpatia pela miséria do povo, esteja claramente envolvida.”
Vários escritores orientalistas residiram no Oriente. Este foi o caso de Lane, Flaubert, Vigny, Nerval, Kinglake, Disraeli, Burton, Byron, Scott, Chateaubriand e T.E. Lawrence. Mesmo tendo conhecido as terras orientais e mantido contato com os povos árabes, nenhum destes autores deixou de criar representações do Oriente.
A leitura do livro nos ajuda compreender como as relações entre o Ocidente e o Oriente foram lentamente moldadas de maneira a permitir uma verdadeira colonização cultural e territorial do Oriente Médio. Para o autor “a versão do mito criada no século XX tem sido mantida com muito maior dano. Produziu uma imagem do árabe visto por uma sociedade ‘adiantada’ quase ocidental. Na sua resistência aos colonialistas estrangeiros, o palestino era ou um selvagem estúpido ou uma grandeza negligível, moral e existencialmente.” A cada episódio dramático do conflito entre israelenses e palestinos, a inferioridade moral dos últimos tem sido reforçada pela imprensa. Os homens bombas são terroristas. Os pilotos israelenses que despejam bombas e mísseis em alvos civis não são terroristas, são soldados eficientes cumprindo seu dever de retaliar a brutalidade dos terroristas.
As recentes invasões do Iraque e Afeganistão foram justificadas e, de certa maneira, ocasionadas pelo orientalismo.
Já na década de 1970 o professor afirmava que o “orientalismo também se espalhou nos Estados Unidos agora que o dinheiro e os recursos árabes tem acrescentado um considerável charme à tradicional ‘preocupação’ com o Oriente, estrategicamente importante. O fato é que o Orientalismo tem se acomodado com sucesso ao novo imperialismo, no qual os seus paradigmas regentes nem contestam, e até confirmam, o persistente desígnio imperial de dominar a Ásia.”
Ao invés de aceitar pacificamente as imagens orientalistas e as guerras causadas e justificadas pelo orientalismo, o livro sugere que devemos conhecer melhor a nós mesmos como ocidentais. O grego Sócrates, considerado o fundador da filosofia ocidental dizia sempre ‘conhece-te a ti mesmo’. Curiosa e ironicamente não foram os intelectuais europeus e anglo-americanos modernos que permitiram ao Ocidente conhecer-se.
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