"Sonhos de Transgressão - Minha Vida de Menina num Harém", romance da socióloga marroquina Fatima Mernissi, engana. Quem pensa que vai encontrar nele histórias de luxúria, protagonizadas por centenas de mulheres, dezenas de eunucos e alguns homens, vai se decepcionar.
O harém a que todo imaginário ocidental logo se refere existiu até 1909. O harém descrito por Mernissi em seu livro só tem em comum com esse outro o fato de as mulheres não poderem sair dele sem a permissão dos homens. Era na verdade uma grande casa onde moravam juntas as famílias dos irmãos de uma mesma família. Não existe privacidade e as regras, do horário das refeições ao "toque de recolher", são severas. Fatina é socióloga e estudiosa da cultura islâmica. Seu livro mais conhecido, "O Véu e a Elite Masculina", de 1987, foi proibido em diversos países árabes. "Sonhos de Transgressão" é uma ficção autobiográfica. Fatima Mernissi nasceu em 1940 em um harém em Fez. "O primeiro capítulo é real, mas no resto do livro uso acontecimentos de minha vida para bordar e comunicar algo sobre as fronteiras. O herói do livro não sou eu, minha mãe ou qualquer outra. É a 'hudud' ", disse Mernissi em entrevista à Folha, por telefone de Rabat, no Marrocos, onde vive. "Hudud" são as fronteiras sagradas, o que separa aquilo que é permitido do que é proibido. "Ser muçulmano era respeitar a hudud. E, para uma criança, respeitar a hudud significava obedecer", escreve Mernissi.
É do ponto de vista da menina Fatima que a história é contada. Ela ouve sua mãe, uma mulher analfabeta, reclamar da falta de liberdade das mulheres. Ouve sua prima progressista Chama fazer discursos feministas. Mas ouve também sua avó e sua tia defenderem as tradições muçulmanas.
Todas vivem na mesma casa, dividem o mesmo terraço onde bordam, contam histórias, passam máscaras no rosto e hena no cabelo. "Sonhos de Transgressão" é um livro feminino e feminista. "Sou universalista, gosto de ter leitores dos dois sexos e não escrevo para mulheres. Uma vez, há uns sete anos, uma editora italiana me pediu para publicar um livro numa coleção. Quando me mandaram um exemplar para ver, vinha escrito 'Para a Mulher'. Decidi não publicar ali, porque para mim isso é um harém. Mulheres falando com mulheres é o harém de novo", disse Mernissi. A autora tampouco quer ser identificada como feminista. "Não acredito nas feministas ocidentais, na estratégia ou filosofia antimacho, porque não acredito que uma mulher que esteja sofrendo por fronteiras deva ser proibida de se mover livremente. A liberação do ponto de vista do harém é uma sociedade livre onde a competição é possível para todos e não existe nenhuma exclusão. Não se trata de uma guerra entre homens e mulheres. Acho isso muito arcaico e primitivo", afirmou. "Uma das coisas boas que tive na minha infância é que o feminismo não me foi ensinado pelo Ocidente, mas por essas mulheres analfabetas que tinham uma ideia clara de que o harém não era bom para os seus interesses e o rejeitavam tentando usar o que tinham para mudar a situação. E o que elas tinham era a capacidade de se expressar, fazer teatro, bordados."
A autora, que tem diplomas universitários de Marrocos, França e Estados Unidos, defende a intuição e outras características femininas para se fazer "a revolução". "A ideia de que somente a educação leva a mulher a buscar a liberação é um dos estereótipos que eu queria combater no livro. Hoje, em muitos países árabes, dizem que não pode existir democracia porque as pessoas são analfabetas. Quis mostrar no livro que ter ou não acesso à educação não tem nada a ver com reconhecer os mecanismos de opressão e as chances de liberação. Você entende o que digo? Tenho certeza que no Brasil vocês têm o mesmo problema com as elites. Elas decidem que porque têm conhecimentos especiais vão ditar aos outros o que devem fazer para se libertar. Assim, você tem essa ditadura que se disfarça em revolução."
Mernissi, de fato, vai de encontro às feministas mais ferrenhas ao exaltar a fragilidade e a feminilidade em todo o livro. "O que eu queria, não importa se o leitor for homem ou mulher, era que a pessoa entrasse em contato com sua fragilidade interior. E percebesse que não importa o quão ruim uma situação possa ser, porque sempre é possível sonhar e imaginar um outro mundo. Estar numa posição de fragilidade não significa que você não possa lutar. Sou uma pessoa muito otimista."