Nascida em 18 de junho de 1901, Anastásia foi a quarta filha do czar Nicolau II e sua esposa, Alexandra Feodorovna. Naquele dia, o imperador da Rússia anotou no seu diário o seguinte: “Exatamente às seis da manhã, uma pequena filha – Anastásia – nasceu. Foi tudo muito rápido e, graças a Deus, sem complicações! Por tudo ter começado e acabado enquanto todos ainda dormiam, ambos [o czar e sua esposa] temos um sentimento de calma e solidão”. Entre os muito significados do nome escolhido para a criança encontramos “aquela que se liberta das correntes”, “aquela que se reerguerá”, ou “aquela que renascerá”. Contudo, a notícia da chegada de uma garota foi recebida com certo desapontamento por seus pais e pela corte, que há muito esperavam um menino para herdar a coroa de seu pai. Essa situação só se resolveu em 17 de agosto de 1904, quando, para alívio de todos, nasceu o czarevich Alexei. As muitas fotos da família imperial sugerem que naquele grupo reinava um tipo de união e felicidade pouco encontrado entre as outras casas reinantes da Europa. Além disso, um dos elementos que mais chama a atenção das pessoas é a beleza daquelas crianças. Nicolau e Alexandra com certeza deviam se orgulhar muito desse aspecto!
Todavia, Alexei sofria de hemofilia, doença herdada da rainha Vitória, avó de Alexandra. Diferentemente dele, Anastásia era uma menina robusta e enérgica. Talvez ciente de que os pais preferiam que tivesse nascido menino, a grã-duquesa logo apresentou um comportamento controverso com relação ao de suas irmãs: gostava de pregar peças nos outros e não se preocupava com sua aparência. Era uma menina durona, no sentido literal da palavra. Seu tutor, o francês Pierre Gilliard a descreveu como “travessa e engraçada”, tendo um senso de “humor apurado” e dotado de “comentários sarcásticos” que “atingiam quase sempre assuntos sensíveis”. Para Gilliard, esse desvio comportamental seria corrigido com a idade. Apesar de uma aparente preguiça, Anastásia era uma “criança dotada”, “tão vivaz, e sua alegria tão contagiante”, que muitas pessoas costumavam chama-la de “raio de sol”. Quem na primeira década de 1900 poderia imaginar que aquela garotinha teria um final tão trágico? A verdade é que a situação na Rússia ia nada bem e o povo, com o passar dos anos, passou a culpar unicamente o czar pela causa de seus infortúnios. Quando a Revolução estourou e derrubou a monarquia em 1917, o destino da família imperial ficou cada vez mais comprometido e as bases para o mito que ganharia os olhos do mundo, afixadas.
Com efeito, é a partir desse ponto que a nossa história começa. Tentemos agora reconstruir o cenário do crime: por volta das 2 horas da manhã de 17 de julho de 1918, o czar Nicolau II, sua esposa, filhos e alguns criados foram despertados pelos guardas da fortaleza bolchevique em Ecaterimburgo, local onde a família imperial russa era mantida prisioneira desde abril daquele ano, sob a vigilância de Yakov Yurovsky. Segundo o testemunho desse dedicado revolucionário, os Romanov haviam sido avisados de que deveriam descer ao porão para serem fotografados em grupo, como haviam feito várias vezes em tempos passados. Nicolau pediu então a Yurovsky que lhe providenciasse três cadeiras: uma para seu filho, Alexei, outra para sua esposa, Alexandra, e uma para si mesmo. Porém, o que o ex-imperador não sabia é que no quarto ao lado os soldados preparavam suas armas para atirar contra a família imperial e seus servos. Às 02h30min, Yakov Yurovsky apareceu no cômodo acompanhado por uma comissão de guardas e leu diante das pessoas ali presentes a seguinte ordem: “em vista do fato de seus parentes continuarem a atacar a Rússia Soviética, o Ural Executive Committee decidiu executá-lo”.
A reação do monarca deposto face à sua família foi de incredulidade. “Como assim?”, respondeu Nicolau, ao passo que Yurovsky relia a ordem de execução. Imediatamente, a Imperatriz e a Grã-duquesa Olga, a filha mais velha do casal, tentaram se colocar à frente do czar, mas era tarde demais. Yakov deu o sinal aos guardas para que atirassem. Recebendo vários tiros na cabeça e no peito, Nicolau morreu instantaneamente, mas o restante de sua família não teve a mesma “sorte”. Em meio a tanta fumaça, os executores não conseguiam enxergar direito para qual direção suas armas estavam apontadas. Quando as portas do quarto foram abertas e a névoa dissipada, nova surpresa: as três outras filhas do czar, Tatiana, Maria e Anastásia ainda estavam vivas. Uma vez que carregavam no interior de suas roupas muitos diamantes, as balas, ao atingirem as pedras, ricocheteavam. Alguns chegaram até a interpretar aquilo como uma atuação da providência divina! Sendo assim, Yurovsky ordenou que as baionetas fossem acionadas e, um a um, os sobreviventes foram assassinados. Terminada a tarefa, os bolcheviques precisavam se livrar dos corpos em segredo, para que não fossem resgatados e reverenciados como verdadeiros mártires pelos simpatizantes czaristas.
Para desfazerem-se dos restos mortais, os cadáveres foram levados para um bosque distante, nos arredores de Ecaterimburgo. Segundo os relatos de Yakov Yurovsky, já era quase manhã quando os corpos foram jogados numa vala comum. Por medo de que alguém passasse pelo local naquele momento e reconhecesse as vítimas, fora jogado ácido nos despojos de Nicolau e sua família, que em seguida foram incendiados. Contudo, dependendo do calor, o fogo necessita de 7 horas para consumir tecido e gordura, deixando o esqueleto coberto apenas por uma camada gordurosa. Bastante tempo, diga-se de passagem. Seria possível que nesse ínterim alguma das vítimas que se pensasse estar morta conseguisse escapar? Conforme o depoimento de Yurovsky, dois dos corpos menores, possivelmente os de Anastásia e Alexei, foram separados dos demais para serem enterrados em outro local. Teria algum deles fugido, enquanto o restante da família queimava? Aqui, caro leitor e leitora, começa um dos maiores mistérios do século XX: a suposta sobrevivência de filha mais nova de Nicolau e Alexandra. Ao longo das décadas passadas, muitas mulheres apareceram publicamente afirmando ser Anastásia. Nenhuma delas, contudo, foi mais famosa do que Anna Anderson.
Provavelmente de origem polonesa, Anna Anderson ganhou destaque entre os anos de 1920 e 1922 por contar uma história que parecia quase surreal. De acordo com sua narrativa, ela (Anastásia), havia se fingido de morta entre os corpos de sua família, tendo conseguido escapar com a ajuda de um guarda que se apiedou de sua condição após descobrir que estava viva. Anderson decidiu então travar uma verdadeira batalha judicial nos tribunais alemães que perdurou de 1938 até 1970. Como não conseguiu provas suficientes de que era a Grã-duquesa, o caso foi oficialmente arquivado. Quando morreu em 1984, seu corpo fora cremado. Porém, em 1994 foram feitos teste de DNA com uma amostra do tecido de Anna, preservada num hospital, e o sangue de um dos sobrinhos-netos da czarina Alexandra, Felipe, duque de Edimburgo. Aceitando como fato que a amostra de tecido pertencia a Anna Anderson, o resultado do teste provou que ela era uma impostora. Tampouco se parecia fisicamente com Anastásia, como podemos observar ao comparar fotografias das duas. Além desse, outros rumores dão conta de mulheres menos conhecidas que afirmaram ser a filha do czar, dando provas suficientes de que o mito de sua sobrevivência era amplamente difundido na primeira metade do século XX.
Não obstante, surgiram relatos fantasiosos de que comboios bolcheviques andavam a procura de Anastásia Romanov, acrescentando ainda mais fantasia ao caso. Segundo o depoimento da princesa Helena Petrovna, enquanto esteve detida em Berlim (1918), um dos guardas lhe mostrou uma moça que se dizia ser Anastásia. Como a princesa não a reconheceu, ele tirou-a dali. Outros rumores davam conta de que a Imperatriz Alexandra e suas filhas foram vistas na cidade de Perm. Com efeito, a verdade degradante por trás dessas histórias é que, para as pessoas, o czar e sua família passaram de mortos a foragidos quase que da noite para o dia. Especulações de uma possibilidade de fuga para os Romanov foram inclusive feitas por alguns biógrafos, entre os quais Robert K. Massie, autor do recém-publicado no Brasil “Nicolau e Alexandra”, e Helen Happaport, autora de “Os últimos dias dos Romanov”. Segundo esses pesquisadores, houve um momento em que Yakov Yurovsky chamou os guardas à sua sala para que entregassem todos os objetos que tinham pegado das vítimas, deixando assim os corpos destas pouco vigiados, em cima da caminhonete que os levaria para a floresta. Se algum deles estivesse vivo, teria sido a chance perfeita para escapar.
Conjecturas à parte, qualquer ideia de sobrevivência para a família imperial se mostrou sem fundamento quando em julho 1991 seus remanescentes foram finalmente identificados. A equipe do cientista forense das forças armadas de Washington, Dr. Michael Coble, exumou os restos dos ossos encontrados numa cova na floresta de Ecaterimburgo e concluiu que de fato de travavam de Nicolau, Alexandra e três de suas filhas. Em 1998, sete anos após o achado, os despojos foram sepultados com honras de estado na Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo. No dia 15 de agosto de 2000, a Igreja Ortodoxa Russa anunciou a canonização dos Romanov. Um par de túmulos, porém, permanecia vazio. Um deles era destinado ao czarevich Alexei e o outro, a um das grã-duquesas, Maria ou Anastásia, cujos ossos não foram encontrados juntos com os demais. A equipe envolvida nas escavações tinha esperanças de que em breve seus túmulos seriam descobertos. Algumas pessoas podem ter interpretado a ausência dos dois príncipes como um sinal de que eles poderiam de alguma forma ter sobrevivido. O mito de Anastásia ganhava então mais força, especialmente com sua entrada no mundo da literatura e do cinema, contagiando os mais diferenciados públicos.
A produção cinematográfica mais recente sobre a vida da princesinha é o desenho animado da 20th Century Fox, “Anastásia” (1997). O filme narra a trajetória de Anya, uma garota órfã que não consegue se lembrar qualquer coisa relacionada ao seu passado. Com a ajuda de Dimitri e Vladimir, dois charlatões de São Petersburgo, ela parte para uma aventura até Paris, onde saberia de sua verdadeira origem. Após descobrir ser a única sobrevivente dos Romanov, Anya teve que lidar com o vilão Rasputin, o responsável pela destruição de sua família. Descontando as liberdades históricas que uma produção direcionada ao público infantil certamente tomaria, “Anastásia” foi responsável por fazer com que crianças do mundo inteiro voltassem a sonhar com a história da princesa que sobreviveu. Até hoje a produção exerce grande fascínio no público e foi responsável por alimentar as esperanças de um final feliz para a grã-duquesa. Infelizmente, a fantasia de muitos foi frustrada quando, em junho 2007, dois esqueletos foram encontrados numa cova a 60 metros de distância da primeira sepultura, pertencentes a um garoto entre 12 e 15 anos e uma garota entre 17 e 19 anos.
Imediatamente, testes de DNA mitocondrial foram feitos com amostras dos remanescentes dos jovens e da czarina Alexandra. Após os testes, constatou-se que as sequências batiam exatamente. Mas o trabalho ainda não tinha acabado. Para obter uma conclusão completa, era preciso efetuar novos testes com o DNA de Nicolau. Por sorte, uma camisa manchada com o sangue do czar era conservada pelo Museu Hermitage, em São Petersburgo. Com as análises das amostras de sangue e osso constatou-se uma combinação perfeita. Os dois filhos do casal de imperadores tinham sido identificados. Os restos de Alexei e Anastásia (ou Maria) finalmente puderam encontrar descanso, da mesma forma como os muitos boatos envolvendo a suposta fuga da família imperial russa. Contudo, ainda hoje há quem acredite que de alguma forma ela sobreviveu, que poderia ter escapado e tido uma vida normal. A simpatia pela sua história está longe de chegar ao fim. Fazendo jus ao significado de seu nome, Anastásia renasceu como uma princesa encantada no imaginário popular, brilhando eternamente como um “raio de sol” e contagiando a milhares de pessoas com seu sorriso traquino e o enigma de sua vida.
Imediatamente, testes de DNA mitocondrial foram feitos com amostras dos remanescentes dos jovens e da czarina Alexandra. Após os testes, constatou-se que as sequências batiam exatamente. Mas o trabalho ainda não tinha acabado. Para obter uma conclusão completa, era preciso efetuar novos testes com o DNA de Nicolau. Por sorte, uma camisa manchada com o sangue do czar era conservada pelo Museu Hermitage, em São Petersburgo. Com as análises das amostras de sangue e osso constatou-se uma combinação perfeita. Os dois filhos do casal de imperadores tinham sido identificados. Os restos de Alexei e Anastásia (ou Maria) finalmente puderam encontrar descanso, da mesma forma como os muitos boatos envolvendo a suposta fuga da família imperial russa. Contudo, ainda hoje há quem acredite que de alguma forma ela sobreviveu, que poderia ter escapado e tido uma vida normal. A simpatia pela sua história está longe de chegar ao fim. Fazendo jus ao significado de seu nome, Anastásia renasceu como uma princesa encantada no imaginário popular, brilhando eternamente como um “raio de sol” e contagiando a milhares de pessoas com seu sorriso traquino e o enigma de sua vida.
Link do texto no blog do autor: Rainhas Trágicas
Referências Bibliográficas:
KHRUSTALEV, Vladimir; STEINBERG, Mark. A queda dos Romanov. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
MASSIE, Robert K. Nicolau e Alexandra. Tradução de Angela Lobo de Andrade. – São Paulo: Rocco, 2014.
RAPAPPORT, Helen. Os últimos dias dos Romanov. Tradução de Luís Henrique Valderato. – Rio de janeiro: Record, 2013.
Fonte: Literatortura
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